Os domingos à tarde em Espanha não costumam ser muito animados. Na maior parte dos domingos os espanhóis costumam estar a dormir a sesta, mas neste domingo especial mais de metade dos nuestros hermanos estava agarrada à televisão. Porquê? Porque Fernando Alonso estava dentro de um carro de Fórmula 1.
Em 2003 os espanhóis descobriram a Fórmula 1, o segundo desporto mais visto em todo o mundo. Graças às proezas do asturiano, a Espanha é o segundo país do mundo com maior audiência nos Grandes Prémios, com uma média superior a 55% de telespectadores ligados à Telecinco (cadeia de TV que, sabiamente, comprou os direitos em 2003) e uns 9 ou 10% ligados à transmissão em formato totalmente digital e comentários em catalão.
Do catalão, lamento, entendo muito pouco, logo ali a seguir ao quase nada. Por isso, resolvi assistir às transmissões onde se falava castelhano. E desde os treinos de qualificação que há uma palavra que se ouve (muito) mais vezes do que as outras: «Alonso».
Gonzalo Serrano e Victor Seara são os comentadores de serviço, Antonio Lobato é o coordenador e editor e, durante a corrida, um convidado muito especial - Pedro Martinez de La Rosa, espanhol, piloto de testes da McLaren-Mercedes, uma presença genial que ajudou a explicar detalhes como a temperatura que um pneu intermédio deve ter como limite no eixo da frente, a velocidade a que o Safety Car deve andar para prevenir que os F1 sobreaqueçam, como agir quando dois carros da mesma equipa precisam montar pneus de chuva com urgência e como normalmente reage Fernando Alonso quando tem que forçar o ritmo para apanhar o líder da corrida. * Chapeau, 'señor' De La Rosa. Já tinha ficado com boa impressão sua quando o entrevistei, em Janeiro, agora confirmo que é realmente uma figura exepcional.
No meio do caos que foram as primeiras voltas do Grande Prémio da Europa, Pedro De La Rosa brilhou, ao manter uma calma extraordinária, ao evitar a histeria com que os dois comentadores residentes se atropelavam e o único a ter sido capaz de explicar por que razão Lewis Hamilton foi recolocado em pista pela grua dos comissários: «hombre!, o que os regulamentos dizem é que, se o carro estiver a trabalhar, podes voltar à pista. Não especifica se podes ou não ser ajudado por um elemento mecânico, nem em que circunstâncias. Normalmente o problema é que não conseguimos convencer nenhum comissário a empurrar-nos de volta para a pista e os comissários são aconselhados a evitá-lo, se for num local perigoso». O que aconteceu no Nürbürgring, na visão lúcida de De La Rosa, «foi que alguém disse pelo rádio ao Lewis [Hamilton] para se deixar estar dentro do carro porque se calhar alguém o iria tirar dali. Espanta-me que o tenham tirado para a pista e não para a via de serviço da escapatória, mas, hombre!, se o tiraram, tiraram». Pergunta do comentador residente: «e não é perigoso ficar dentro do carro numa escapatória?». Resposta sincera de De La Rosa: «hombre!, se fosse eu, com tantos carros a voarem para a escapatória em todas as direcções, ficava agachadinho dentro do carro à espera que passasse a 'borrasca'. Mas também não entendo como é que permitiram que a grua se pusesse a manobrar com a corrida em andamento».
Não há como ter um comentador que, realmente, sabe o que se está a passar ali dentro. E nisso, obviamente, também tiro o chapéu ao Tiago Monteiro porque ajuda a tornar as transmissões da Sport TV mais interessantes com tudo aquilo que aprendeu nos últimos anos. Quando a corrida «acalmou» e se tornou monótona, voltou aquilo que presumo ser a normalidade nas transmissões da Telecinco: Alonso para a frente e para trás, o que Alonso fez agora, o que vai fazer a seguir e, neste caso específico, o que Alonso tem a ganhar nesta corrida uma vez que Hamilton tem uma volta de atraso. Curiosamente, nem uma única vez tocaram no assunto do caso de espionagem que envolvia a McLaren...
Lá para o final da corrida, quando recomeçou a pingar, os comentadores acordaram: «Alonso está a recuperar! Alonso está a recuperar!». * Emoção. Sim, eu sei, são espanhóis entusiasmados com um piloto espanhol, mas é tão mais interessante assistir a uma corrida comentada com emoção...
Deu-se, então, o momento alto da corrida: claramente mais rápido que Felipe Massa, o bi-campeão do mundo resolveu passar por fora e, depois de ambos os carros se tocarem, consumou a ultrapassagem, já pista estava encharcada. Seguiram-se cinco minutos em que nenhum dos comentadores ousou interromper o discurso emocionado de Gonzalo Serrano * que, em certa medida, fez lembrar o comentador argentino que chorou em directo quando viu Diego Maradona fintar meia-Inglaterra para marcar um dos golos mais memoráveis da História durante México'86 e lhe perguntou, retoricamente, «de que planeta vens tu?»...
«Ele está de volta! O nosso deus está de volta! Ah, Fernando! Que bela resposta deste tu a todos os que te criticaram! Como és magnífico! Como é bom ter-te de volta! Como é possível que alguém tenha posto em causa o teu talento! És grande e acabaste de mostrar como és grande! Este é o nosso Fernando Alonso, aquele que duvidavam que ainda era capaz de fazer ultrapassagens como esta, mas que no fundo nós sempre soubémos que ele sempre aqui esteve»... Isto e mais umas quantas frases de que não me lembro, numa ode inspirada, se calhar despropositada, mas suficientemente emocionada para nos fazer querer ser fã de Alonso por cinco minutos.
Contava-me um colega espanhol, há uns meses, que, quando era miúdo, Fernando Alonso gostava de fazer corridas de kart 'a feijões' com os amigos, porque ganhava sempre. Num dia de chuva, em frente a todos os amigos, o seu pai desafiou-o a fazer um duelo em pista para lhe dar uma lição: sobre o asfalto molhado, o jovem Fernando levou um grande 'baile' do sénior Jose Luis e, humilhado, esteve duas semanas sem falar ao pai. Desse dia em diante, sempre que caíam umas gotas, Fernando pegava no kart e ia para pista com pneus de piso seco, para garantir que aprendia a andar depressa. Depois de saber isto e, sobretudo, depois de ter visto o que vi no Nürbürgring, percebo por que razão ele triunfa quando o caos reina num Grande Prémio à chuva.
Nesse dia, nas esplanadas dos cafés, muitas vezes se ouviu: «y Fernando, has visto? Qué carrerón!», entre discussões sobre o génio do asturiano e o mau feitio de Felipe Massa, quando disse antes de subir ao pódio «como podes dizer que eu fiz de propósito para bater?! Ganhas e dizes uma coisa dessas? Olha, vai cagar! Vais ver se não aprendes da próxima vez».
Os espanhóis estão rendidos à F1 e apenas lamentam que o seu ídolo não seja mais simpático. Em popularidade, dizem que é maior do que Dani Pedrosa, o novo talento no Motociclismo, mas se tivessem que escolher, escolhem o piloto das duas rodas. Por ser menos anti-herói.